Posse do novo Guardião

Posse do novo Guardião
Cerimônia de Posse

O Guardião

O Guardião

HOMENAGEM À JULIO DE CASTILHOS

HOMENAGEM À JULIO DE CASTILHOS

domingo, 22 de abril de 2012

A “LEI DOS TRÊS ESTADOS” : primeira lei da sociologia

Em seu monumental Curso de Filosofia Positiva, compreendendo sessenta lições em seis alentados tomos, o primeiro dos quais publicado 1830, declara Augusto Comte haver descoberto a lei que rege a evolução das concepções humanas, ou seja, o modo de pensar ou de raciocinar da Humanidade. Segundo ele, nossas concepções passam, necessariamente, por três estados ou formas de pensar, a saber: o Estado Teológico ou Fictício( forma teológica de pensar), o Estado Metafísico ou Abstrato ( forma metafísica de pensar) e o Estado Positivo ou Científico( forma científica de pensar). A essa regra constante, Comte denominou “ Lei dos Três Estados” e, ao fazê-lo, enunciou a primeira lei da sociologia. Note-se que a Lei dos Três Estados nada tem a ver com períodos de tempo ou fases da história. Ela diz respeito apenas aos modos como as pessoas pensam ou raciocinam a qualquer tempo. O primeiro Estado ( ou forma de raciocinar) , “ Estado Teológico”, divide-se em três sub-estados ( fetíchico, politeísta e monoteísta).No primeiro sub-estado, a forma de pensar das pessoas leva-as a atribuir todos os fenômenos de ordem objetiva ou subjetiva à ação de seres inanimados, aos quais emprestam as mesmas qualidades dos seres humanos, tais como vontade, poder,sentimentos e outras. O que caracteriza o fetichismo, na concepção de Augusto Comte, é essa atribuição de poder, vontade, sentimentos e outras qualidades humanas aos objetos,aos seres inanimados. É pensar, imaginando que a “macumba” é ritual capaz de produzir certos efeitos ( dizia Nenen Prancha, o filósofo do futebol de areia : “ Se macumba fosse eficaz, o campeonato baiano acabaria empatado”); ou raciocinar com base na crença de que tais ou quais objetos têm o poder ou capacidade de proteger o indivíduo dos fenômenos naturais, tais como medalhinhas, amuletos,figas e outros ; é a “água benta”, os “ banhos de ervas”, “ as velas acesas nos altares e nas ruas”, as “pajelanças” “as exorcisações” e outras práticas semelhantes. São concepções que representam a “infância mental ”da Humanidade, exatamente como se dá com a infância humana, em que a criança atribui aos seres inanimados as mesmas vontades e sentimentos próprios dos seres humanos.Daí ver-se que a criança conversa com a boneca, atribuindo-lhe todas as qualidades dos seres humanos, sobretudo os sentimentos. Nosso linguajar traz exemplo desse modo de pensar, quando dizemos “ o carro não quer pegar”, como se o motor de um carro tivesse vontade. Desse primeiro sub-estado ou forma de pensar, evoluiu-se para o segundo sub- estado ou forma de raciocinar, que é o politeico, em que os fenômenos naturais já não são atribuídos a seres inanimados, a objetos, mas à ação aparentemente arbitrária de diversas divindades, cada uma responsável por uma categoria de fenômenos: no politeismo, havia “ deuses” para presidir todos os fatos da vida, tais como, a caça,a guerra, a paz, a doença, a saúde, a colheita, as pestes,enfim, para desencadear todos os fenômenos que afetavam a Humanidade. Daí a necessidade de o homem permanentemente cultuar essas divindades e aplacar-lhes a ira, fazendo-lhes oferendas e até sacrifícios humanos , afim de obter os resultados desejados: saúde, uma boa colheita, a paz etc. Em Roma, chegou-se a erguer um Templo ao Deus Desconhecido, tal era o temor dos romanos que, por falta de culto próprio, esse deus desconhecido fizesse recair sobre o povo romano as maiores desgraças. Os deuses do politeísmo grego e romano são de todos conhecidos (tais como Netuno/Poseidon, deus dos mares; Diana, deusa da caça; Apolo, deus da Luz; Afrodite/ Venus, deusa do amor e da beleza; Minerva, deusa da sabedoria e das artes; Júpiter/ Zeus, deus dos céus e do tempo, a mais importante das divindades do politeismo; e uma miríade de outros).Muito embora esses deuses tenham governado a Terra por milênios, o progresso de nossas concepções, ou seja, de nosso modo de raciocinar, e o desenvolvimento do espírito científico fez com que todos esses deuses desaparecessem sem deixar rastro. Ninguém pode “ provar” que Netuno não existe. Foi o progresso intelectual da Humanidade que tornou esses deuses desnecessários. Com o evoluir dos tempos, passaram os homens a pensar que não havia um deus específico para reger ou presidir cada fenômeno; que todos os fatos de qualquer natureza, eram sempre decorrentes da vontade e do poder de um só deus, a quem passaram a atribuir três poderes absolutos: onipotência( tudo poder), onisciência( tudo saber) e onipresença ( estar em todos os lugares ao mesmo tempo). Aliás, esses três poderes absolutos atribuídos à divindade podem deixar os crentes em dúvida quanto à alegada bondade infinita da divindade, porque, sendo ela onipotente, omnisciente e onipresente, terá certamente sabido que em 11 de setembro de 2001 ia ocorrer o ataque às Torres Gêmeas em NY(omnisciente); estava lá quando o ataque ocorreu ( onipresente) e podia tê-lo evitado(onipotente) poupando vidas humanas, mas não o fez. Recentissimamente, em sua visita a um dos famosos campos de concentração da Alemanha nazista, o Papa Bento XVI teria se perguntado: “ Onde estava deus ?”. Estivesse eu lá, e teria respondido , que deus estava presente ao massacre dos judeus, que sabia que ele ia ocorrer e que podia tê-lo impedido, mas não o fez. Aliás, em matéria de “absoluto” é sempre bom lembrar a máxima de Augusto Comte: “ Tudo é relativo; eis o único princípio absoluto”. Agora, era preciso agradar e aplacar a ira de um só deus, através do culto, das oferendas e de outras formas que demonstrassem a submissão do homem à vontade desse deus único. Pessoas criadas no catolicismo fazem “ promessas” a certos santos, afim de obterem determinados resultados, quer em relação a si próprios,quer em relação a terceiros.( Aliás, o Catolicismo, de certa forma, substituiu os deuses do politeismo pelos santos, havendo-os para todos os fins e todos os gostos e, no Brasil, temos também o sincretismo dos santos do Catolicismo com as “entidades” dos cultos africanos: orixás, oguns, mães de santo e outras). Na Antigüidade, fazia-se o sacrifício de seres humanos e depois de animais;hoje, há os que se impõem certos sacrifícios(“promessas”) como forma de obter uma “graça” provinda de algum ser sobrenatural. Há um episódio interessante ocorrido com Anatole France, o grande romancista francês, que era radicalmente ateu. Certo dia, seus amigos ponderaram que ele não devia continuar assim; que devia visitar a Gruta de Lourdes, onde veria milhares de muletas penduras nas paredes , lá deixadas por aqueles que obtiveram a graça da Santa e recuperaram a capacidade de andar. E Anatole France limitou-se a fazer uma pergunta: “ Nenhuma perna de pau?”. Sabemos que os traumas psicogênicos podem causar a perda da visão, da fala e de outros sentidos e até causar paralisia. Esses choques são, muitas vezes, reversíveis, e pelo mesmo “instrumento” que os causou, ou seja, pela motivação psicológica. Assim, a pessoa que está absolutamente convicta de que a santa vai curá-la, pode predispor seu cérebro a agir nesse sentido e reverter o processo de perda. Daí a força da “ fé”, que, evidentemente,só funciona em relação à própria pessoa que sofreu a lesão de origem psicogênica( muito embora certas pessoas acreditem que a torcida por uma equipe esportiva vai levá-la à vitória !) Mas, quando se dá a perda de um órgão, de um membro( perna, braço), aí não há fé, não há santo, não há deus que consiga fazer nascer outro. Alguns animais, segundo consta, têm a capacidade de reproduzir membros perdidos. Assim, parece que as lagartixas podem refazer o rabo perdido. Temos o “mimetismo” que é a possibilidade de determinados animais mudarem de cor e confundirem-se com o meio para fugir de um predador. Temos também o fenômeno da “ metamorfose”, em que a lagarta morre e, ao cair a casca que a envolvia, surge uma libélula ou borboleta. São todos fenômenos estudados e explicados pelos zoólogos, nada havendo de “sobrenatural” neles. É interessante notar que a “ fé” é exatamente o instrumento dos “placebos” que os médicos receitam para pacientes que sofrem de doenças psicogênicas, ou seja, uma pílula ou cápsula que não contém qualquer medicamento, mas apenas açúcar, farinha ou outro material inócuo, mas que o paciente julga conter o medicamento que vai curá-lo. E, tomando o placebo, com a “ fé” de que vai fazer efeito, acaba conseguindo condicionar o cérebro a promover a cura desejada. É também conhecido o “efeito” médico, cuja simples presença, muitas vezes, faz com que o paciente se sinta melhor. Da mesma forma em que há a “hipertensão” do jaleco branco, isto é, o simples fato de o médico colocar o aparelho de pressão no braço do paciente faz com que a pressão arterial deste aumente, por temor. E quanto menor o grau de instrução da pessoa, mais sujeita está ela a esse tipo de reação emocional. Da mesma forma que ocorreu com os deuses do politeísmo, entende o Positivismo que o advento do Terceiro Estado, o estado científico ou positivo, é inelutável, sendo apenas uma questão de tempo para que a Humanidade passe a raciocinar cientificamente, ou seja, sem atribuir os fenômenos à ação de entes sobrenaturais ou forças cósmicas. Assim como desapareceram os deuses do politeísmo , também o deus único do monoteísmo está fadado a desaparecer com o progresso do espírito científico, sem que seja necessário provar sua inexistência. Ele simplesmente deixará de ser útil ou necessário para a sobrevivência da espécie humana e para explicar os fenômenos de qualquer natureza. Por isso, não há proselitismo no Positivismo. Quem se interessar pela doutrina poderá estudá-la, lendo as obras originais do grande filósofo ou livros escritos por positivistas, mas neles não encontrará a tentativa de “ converter” o leitor à doutrina de Augusto Comte. Quando lembramos dos sofrimentos que tiveram os primeiros “cristãos”, que eram atirados às feras no Coliseu de Roma, não podemos esquecer que, ao renegarem o politeismo e abraçarem o monoteismo, eles estavam ofendendo os deuses que, no entender do povo romano, comandavam a vida humana em todos os seus aspectos. E, por isso, tinham que ser sacrificados. Das mesma forma que a Igreja Católica, no período negro da história da Humanidade conhecido como a “ Inquisição”, colocava na fogueira os “ hereges”, ou seja, aqueles que não aceitavam a doutrina da Igreja. Portanto, o comportamento bárbaro dos romanos – em homenagem aos deuses do politeismo – em nada diferiu do comportamento bárbaro da Igreja Católica, em defesa de sua doutrina. Com o progresso do espírito humano, sugiram pensadores que passaram a atribuir a ocorrência dos fenômenos não mais à vontade arbitrária de vários deuses ou de um só deus, mas a forças cósmicas, a energias, ou a isso a que chamam “natureza”. Ou seja, substituíram a ação das divindades pela ação de entidades. Esse o segundo Estado a que se refere Augusto Comte , e que ele denominou Metafísica ou Estado Abstrato, forma de pensar que representa a “adolescência” do espírito humano, e que nada mais é do que um Estado intermediário que serviu para solapar o Estado Teológico ( ou seja, o modo de pensar teológico) e preparar o caminho para o Estado Positivo( ou seja, a forma científica de pensar). A Metafísica nada cria; não observa os fenômenos para determinar as leis que os regem.Limita- se a “imaginar” causas primeiras, todas atribuídas à ação de entidades (forças ). Preocupa-se com o “por que” e não com o “ como”. Preocupa- se com a causa dos fenômenos, mas não lhes determina o processo. Quer saber por que há energia, mas não sabe como ela se produz nem como atua. A Metafísica que, como dissemos, corresponde à adolescência da Humanidade, perde-se em divagações, imagina causas, satisfaz a imaginação,mas não resulta em nada de prático para a Humanidade. É verborragia pura. Dizia Voltaire que quando duas pessoas discutem e uma não entende a outra, estão discutindo Metafísica; quando elas não se entendem nem a si mesmas, estão discutindo alta Metafísica ! Em sua maturidade, as concepções humanas ( forma de pensar, de raciocinar) passam a basear-se na observação dos fenômenos para daí prever sua ocorrência e, se possível , defender o homem de possíveis efeitos maléficos. É o Estado Positivo, Científico ou Lógico, em que o homem observa os fenômenos para saber quais as leis que os regem e daí prever sua ocorrência e prover para o resguardo da Humanidade. Por isso, Augusto Comte dizia que fazer ciência é “ saber,para prever, afim de prover”. E o saber parte sempre da observação e não da imaginação. É preciso frisar, porém, que os Três Estados não são estanques, isto é, não é necessário que desapareça o fetichismo para que surja o politeismo, nem é necessário que este acabe para surgir o monoteismo. Da mesma forma, a Metafísica convive com o Estado Teológico e o Estado Científico ou Positivo coexiste com a Teologia e a Metafísica. A evolução de um Estado para outro é lenta. Ou seja, as gerações levam muito tempo para abandonar uma forma de raciocinar e adotar outra. Assim, enquanto milhões de indivíduos continuam, em pleno século XXI, presos ao fetichismo ( macumba, água benta, santinhos etc), à teologia e à metafísica, outros milhões já se vão libertando dessas crenças e passando a pensar de acordo com os dogmas baseados no conhecimento científico, que é, necessariamente, lento, mas o único que pode dar respostas exatas para os muitos fenômenos de ordem objetiva ou subjetiva que afligem a Humanidade. O fato de ainda hoje não termos respostas para todas as perguntas que nos ocorrem não significa que a ciência não possa fazê-lo, mas apenas que ainda não teve tempo de chegar lá. Portanto, quando se fala na Lei dos Três Estados, não se está a pensar em compartimentos estanques, ou seja, que até determinado momento a Humanidade pensava teologicamente, depois passou a pensar metafisicamente e por fim passou a pensar positiva ou científicamente. Não. Os Três Estados, que são apenas formas de raciocinar, convivem não apenas nas sociedades, mas nos próprios indivíduos, até que estes consigam livrar-se de toda a herança teológica e metafísica que beberam no leite materno e passem a agir de conformidade com os postulados científicos. Assim, é comum encontrarmos quem pense cientificamente em matemática, astronomia, física, química e biologia( ou seja, não admite a interferência de seres sobrenaturais, divindades ou forças como os responsáveis por esses fenômenos); pense metafisicamente em sociologia e pense teologicamente em moral ou psicologia. Os Três Estados podem conviver na mesma pessoa e só uma educação adequada pode levá- la a pensar cientificamente em relação às sete ciências. Digo sempre aos interessados que muitas pessoas são parcialmente positivistas, sem se darem conta disso. Assim, no exemplo acima, essa pessoa é 5/7 positivista, porque pensa positivamente em relação a 5 ciências. Tinha um amigo médico que recomendava sempre às famílias de seus clientes que se viam vítimas de alguma moléstia infecciosa, que continuassem a rezar e a acender velas, mas que não deixassem de dar o anti-biótico de 8 em 8 horas! Augusto Comte elaborou uma “ classificação das ciências” que até hoje não encontrou refutação séria; nem apareceu outra que a substituísse. Com base no princípio da “ complexidade crescente e generalidade decrescente dos fenômenos correspondentes”, propôs ele a seguinte ordenação: matemática, astronomia, física, química, biologia, sociologia e moral( ou psicologia). Registre-se que o termo “sociologia” foi por ele criado, bem como a palavra “altruísmo”. À medida em que avança o conhecimento científico, as concepções teológicas e metafísicas vão perdendo terreno. Assim, salvo em populações extremamente atrasadas, ninguém mais atribui os fenômenos matemáticos, astronômicos, físicos, químicos e biológicos à ação arbitrária de divindades ou forças. As leis que regem esses fenômenos são bem conhecidas e não há lugar para raciocinar-se teológica ou metafisicamente nessas matérias. Quem joga uma pedra para o ar sabe que ela vai cair em razão da força da gravidade, não havendo deus ou força cósmica que impeça sua queda. Como a sociologia ainda não atingiu o necessário grau de positividade, por não haverem os sociólogos aplicado ao seu estudo o método científico, como preconizava Augusto Comte, ainda encontramos quem tente explicar metafisicamente os fenômenos sociológicos. Mas o tempo cuidará de corrigir essa falha. No Direito, por exemplo, ainda há muitos conceitos metafísicos, tais como , “ soberania popular” , “liberdade democrática” e outros. Hoje em dia, a única área que ainda se apresenta livre para especulações de natureza teológica ou metafísica é a representada pela ciência que Augusto Comte colocou no topo de sua classificação ,por ser a de maior grau de complexidade : a moral ou psicologia. Não obstante o progresso que já se fez na observação dos fenômenos psicológicos, são eles ainda campo fértil para fantasias teológicas e sobretudo metafísicas, que não partem da observação dos fenômenos correspondentes,mas da simples imaginação. Quando falou-se na “ introspecção” como forma de observar-se o fenômeno psíquico ( ou seja, o próprio indivíduo se observando), Augusto Comte ponderou que, para tanto, seria necessário um órgão externo que pudesse observar os fenômenos, pois é impossível o próprio olho do indivíduo ver como se dá o fenômeno da visão; seria necessário um observador externo para ver o funcionamento do cérebro. Ao criar a psico-análise, parece-me que Freud estava tentando criar o “observador externo” de que falava Augusto Comte. Aliás, se não me falha a memória, Freud escreveu que foi lendo um artigo de Augusto Comte sobre as funções cerebrais que se deu conta da importância dos sonhos para a pesquisa dos fatos psíquicos. Para os que estudaram a obra de Augusto Comte no original ou em trabalhos escritos por positivistas, não se contentando com versões de segunda ou terceira mão escritas por autores que quase sempre se mostram hostis ao Positivismo, abertamente, ou não, é interessante notar como suas recomendações vão,aos poucos, sendo aceitas, sem que as pessoas se dêem conta de que foi ele quem primeiro tratou do assunto. Assim, por exemplo, dizia ele que a medicina devia estudar o organismo humano como um todo, dadas as influências recíprocas do moral sobre o físico e do físico sobre o moral.Ou, em palavras atuais, a influência dos fenômenos psíquicos sobre os físicos e destes sobre aqueles. Modernamente, é o que se denomina “ medicina psico-somática”, que leva em consideração tanto os fenômenos físicos, quanto os psíquicos e,sobretudo, suas influências recíprocas. Da mesma forma, Augusto Comte propôs, em seu “Sistema de Política Positiva ou Tratado de Sociologia”, publicado muitos anos após a hecatombe da Revolução Francesa, que a França fizesse três reformas : uma de ordem moral ( substituindo a teologia pelo conhecimento científico, ou seja , abandonando o“ dogma revelado” pelo “ dogma demonstrável” baseado na ciência); uma de ordem política, criando nova forma de governo para substituir a monarquia; e uma social , começando pela incorporação do proletariado à sociedade, ou seja,realizando o que atualmente se chama “ inclusão social”. Outras muitas recomendações de Augusto Comte , se adotadas, seriam de grande utilidade no mundo moderno. Dentre estas, destaco: o lema do desenvolvimento social (“ O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”- note-se que não se trata de uma sucessão, como Noel Rosa e Orestes Barbosa julgaram ao comporem o samba “`Positivismo” : princípio significa “regra” e fim significa “ objetivo”); o lema do desenvolvimento político (“ Ordem e Progresso”), já que o Progresso é necessariamente o desenvolvimento da Ordem, e sem esta não há Progresso( aliás, segundo Augusto Comte , o grande desafio político do futuro seria conciliar a Ordem com o Progresso, de forma que a Ordem não seja tão retrógrada que impeça o Progresso nem este tão anárquico que destrua a Ordem). Foi por isso que Teixeira Mendes - que se tornou Diretor do Apostolado Positivista depois da morte de Miguel Lemos em 1917, este o Fundador da Igreja Positivista do Brasil- ao conceber a Bandeira Brasileira, nela consignou o lema “ Ordem e Progresso”, que era o anseio dos que proclamaram nossa República em relação ao futuro do Brasil. “ Viver às claras” , lema que seria de grande utilidade na administração pública; “Viver para Outrem”, que é o lema da solidariedade social; “Agir por afeição,mas pensar para agir”;“ A educação do coração sempre se sobrepõe à educação do cérebro”;“ O aperfeiçoamento individual se dá pela expansão do altruísmo e pela compressão do egoísmo”; “A educação da criança deve ir sucessivamente do culto à família, ao da Pátria e ao da Humanidade”. Muitas pessoas me perguntam se é correto dizer-se que Augusto Comte criou uma “ religião”. Sim, desde que não se ligue a palavra religião, necessariamente, a dogmas teológicos. O que ele denominou “Religião da Humanidade” pode ser melhor compreendida como forma de educação,lembrando sempre que ele distinguia a “educação” da “ instrução”. Esta visa ao cérebro e objetiva a dar conhecimentos que permitam ao individuo aumentar sua cultura; aquela visa ao coração e objetiva a tornar o homem mais altruísta, mais sociável, mais solidário. A Humanidade é o conjunto convergente das gerações passadas, presentes e futuras, isto é, de todos os que contribuíram, contribuem e ainda contribuirão para a felicidade e o bem estar dos seres humanos. O homem jamais poderá retribuir os benefícios que a Humanidade lhe trouxe e só ela, através das sucessivas gerações, tem a capacidade de resolver os problemas que afligem o gênero humano e trazer-lhe a sempre almejada felicidade através do amor, da ordem e do progresso. A Religião da Humanidade visa a tornar o homem mais fraterno, mais altruista e mais solidário. Durante nosso primeiro período republicano, tivemos o Ministério da Instrução Pública, sob o comando do grande Benjamin Constant, o verdadeiro fundador da República Brasileira. Educação, segundo a doutrina positivista, não é função do Poder Público, mas da família, das escolas particulares e das igrejas, já que o Positivismo prega a plena liberdade espiritual ( liberdade de expressão, de crítica, de ensino, de culto etc) com a total separação da Igreja do Estado. As escolas públicas devem ser, necessariamente, laicas, isto é, sem qualquer orientação religiosa, que é função das famílias, das igrejas e das escolas religiosas. A separação do Estado das Igrejas não significa hostilidade. Significa absoluta neutralidade. Os Poderes Públicos não devem hostilizar,nem beneficiar quaisquer cultos. Devem respeitá-los, na medida em que não sejam ofensivos à dignidade humana , à lei ou à ordem pública. Por vezes perguntam-me como pode um culto religioso ser ofensivo à dignidade humana. Respondo, dizendo que um culto que previsse o sacrifício humano ( como ocorria na Antiguidade), traria essa pecha. Como seria ofensivo à lei ? Se temos,por exemplo, a lei do silêncio, uma igreja que coloque alto-falantes em seu prédio e transmita prédicas nas horas em que a lei exige silêncio, estará violando a lei. E como haveria ofensa à ordem pública? Através de manifestações públicas que sejam constrangedoras ou ameaçadoras para os não-participantes, ou que perturbem a vida da coletividade, tais como procissões e desfiles que impeçam o tráfego ou façam ruído excessivo. É preciso notar que o monoteísmo , por sua própria natureza, tende a tornar seus adeptos intransigentes, quando não fanáticos. Ainda estamos assistindo em nossos dias a manifestações de intransigência e fanatismo religioso em várias partes do mundo.E tudo em razão do monoteísmo, já que pela própria natureza ele é exclusivista. Portanto, a questão da educação religiosa é muito importante. É preciso evitar, a todo custo, que a crença em determinada divindade leve os crentes à irracionalidade, à intransigência e, sobretudo, ao fanatismo. Nossa primeira Constituição Republicana, promulgada em 1891, consagrava, por influência dos positivistas que participaram de sua elaboração ( Julio de Castilhos, Silva Jardim, Quintino Bocayuva, Borges de Medeiros e muitos outros), a mais ampla liberdade em matéria de culto, única forma de evitar-se o desvirtuamento do sentimento religioso. É preciso que as pessoas sejam livres para escolherem a religião que quiserem, o culto que preferirem e, igualmente, de não terem qualquer religião e não aderirem a qualquer culto religioso. Uma sociedade só será efetivamente livre quando os cidadãos puderem, sem receio de perseguições ou sem constrangimento, optar por qualquer religião ou não optar por nenhuma,mantendo-se fielmente ateus. Rio, 2009 Condorcet Rezende

terça-feira, 10 de abril de 2012

AFORISMAS SOCIOLÓGICOS V

MITOS DIFUNDIDOS PELA IGREJA CATÓLICA, NO BRASIL E NO MUNDO

Por Gustavo Biscaia de Lacerda

§ 1º – Defesa da laicidade do Estado

Ao contrário do que muitas vezes afirma, a igreja católica simplesmente não defende a laicidade do Estado, seja em termos teóricos, seja em termos práticos. Em termos teóricos, a laicidade do Estado consiste em um indiferentismo do Estado face à religião, o que, por um lado, põe a igreja em uma situação social e politicamente secundária; por outro lado, esse indiferentismo permite que se constitua um pluralismo social e religioso que é visto como (e de fato é) daninho para a igreja, pois permite o crescimento de outras religiões, outras crenças e, de qualquer maneira, permite o exercício da dúvida e da crítica.

Em termos práticos a igreja nunca aceitou a laicidade; seu universalismo exige que ela veja-se como uma força total e que se imponha a todos. Como o Estado brasileiro constituiu-se tendo a igreja ao seu lado, ela estava junto ao poder; durante o Império, as reclamações da igreja dirigiam-se não em favor da laicidade, mas em benefício da maior autonomia da igreja. Quando a República foi proclamada, os privilégios eclesiásticos oficiais foram revogados, o que, evidentemente, foi visto como o fim do mundo para a igreja: ela insistia na idéia de junção com o Estado, mas desde que subsidiada por ele e politicamente superior ao poder civil.

Era a idéia da “autonomia sem independência”: a igreja manteria o monopólio religioso e privilégios oficiais; teria o controle dos registros de nascimentos, casamentos, óbitos, enterros e o controle dos cemitérios, além de ser a responsável pelas escolas públicas e privadas; seria a fiscal oficial ou para-oficial dos atos do governo, além a responsável pela moral da sociedade. Tudo isso devidamente pago pelo Estado. Nada disso é invenção ou exagero: é possível conferir todas essas informações (e interpretações) no livro do padre José Scampini (1978)[1].

Como durante a I República (1889-1930) a laicidade vigeu – mesmo que com grandes problemas –, desde 1916 a igreja organizou-se para retomar o poder, conseguindo-o em 1930 e 1931, quando, com a mudança de regime político, o segundo cardeal do Brasil (e da América Latina), Sebastião Leme, simplesmente chantageou Getúlio Vargas, como se vê neste trecho simplesmente brutal: “ou o Estado [...] reconhece o deus do povo ou o povo não reconhecerá o Estado” (cf. DELLA CAVA, 1975, p. 15).

A retomada do Estado, via “recatolicização”, evidentemente surtiu efeito; a idéia de que são “tradicionais” as presenças de crucifixos e/ou Bíblias em órgãos públicos e que, dessa forma, a ostentação desses símbolos não ofende a laicidade do Estado é um claro sinal disso.

Mais recentemente, face à exigência de respeito à laicidade do Estado e ao pluralismo religioso e filosófico, quando confrontada com casos extremos de desrespeito a esse pluralismo no ambiente escolar (REAÇÃO DE ALUNO ATEU, 2012), o máximo que a igreja faz é afirmar que “as escolas não podem impor o Pai-Nosso” (CNBB AFIRMA QUE ESCOLAS, 2012). Isso, claro está, é muito diferente de comprometer-se com a laicidade do Estado.

Todo esse comportamento torna-se chocante quando representantes da CNBB dizem o contrário em eventos oficiais – em particular na audiência pública realizada em 2010, pelo STF, para tratar, justamente, da laicidade do Estado. Na ocasião, o representante da igreja afirmou que ela (a igreja) sempre respeitou a laicidade, tendo fundamentos teóricos e históricos para tanto. (A longa existência da igreja e a multiplicidade de textos da Bíblia, tão freqüentemente contraditórios entre si, permitem que citações sejam expostas de maneira adequada conforme a ocasião. A formulação básica, sem dúvida, é a de que “a César o que é César, a deus o que é de deus”, citada nos evangelhos; em seguida, há os textos de João Crisóstomo, o primeiro doutor da igreja que sistematizou a separação entre os dois poderes, entre os séculos V e VI.) Ora, é difícil sustentar qualquer respeito teórico e prático à laicidade e ao pluralismo religioso e filosófico quando se estuda com um mínimo de cuidado a história do Ocidente e do Brasil.

Fica a pergunta: a CNBB, ao afirmar perante o STF o respeito à laicidade, está sendo ingênua, ignorante ou hipócrita?

§ 2º – Origem cristã da civilização ocidental

Recentemente, o bispo de Criciúma, Jacinto Inácio Flach, afirmou que “o Ocidente surgiu baseado no cristianismo” (cf. TIRAR CRUCIFIXO DOS TRIBUNAIS É ATO ‘DE QUEM NÃO É DO BEM’, 2012)[2]. Essa afirmação curiosamente faz um apelo à história para uma religião que rejeita a história, especialmente a sua própria. O Ocidente, sem dúvida alguma, deve muito de si ao catolicismo: foi a religião que criou os laços entre os povos de outra maneira separados durante a Idade Média. Entretanto, atribuir ao catolicismo esse imenso poder sociogênico é um exagero de proporções monumentais.

Antes de mais nada, o Ocidente surgiu a partir das civilizações mediterrâneas, na região da Ásia Menor. A principal delas, para o Ocidente, foi sem dúvida a civilização helênica, que habitava na região da Grécia, das ilhas circunvizinhas e das costas ao redor (incluindo a Ásia Menor – onde nasceu Aristóteles – e a Itália – onde trabalharam e escreveram suas obras Pitágoras e mesmo Platão). Os gregos, como se sabe – ou melhor, como se deveria saber – foram os iniciadores da filosofia, isto é, da reflexão sistemática sobre a realidade, tendo também fundado a ciência abstrata.

Como os gregos eram profundamente xenófobos e não conseguiam pensar em termos políticos superiores à cidade-Estado, esgotaram suas energias em guerras intestinas, de que a mais famosa foi a Guerra do Peloponeso. Alexandre Magno, em seguida, difundiu a cultura grega pela Ásia, mas o seu império não sobreviveu à sua morte.

Felizmente para a Humanidade, os romanos não eram xenófobos como os gregos e souberam criar um império que durou. Mais do que isso: mais preocupados com questões práticas que com debates acadêmicos, os romanos aceitaram todas as inovações que julgaram úteis, incorporando as culturas de outros povos: em particular, a partir do século II da era corrente, já na fase propriamente imperial, com o expansionismo encerrado, os romanos preocuparam-se mais em estimular e difundir a cultura grega[3].

Pois bem: o que o bispo Flech chama de “cristianismo” é uma construção religiosa feita por um judeu que tinha cidadania romana e educação grega – no caso, Paulo de Tarso. A cidadania romana permitia a Paulo circular pelo império com tranqüilidade, saindo do gueto auto-imposto pelos judeus na Palestina; a cultura grega permitiu que as crenças bairristas dos judeus fossem convertidas em mitos universais, ou melhor, universalmente assimiláveis. Não se pode diminuir a importância da ação daquele que, merecidamente e não por acaso, foi chamado de “apóstolo dos gentios”: se a crença dos cristãos ficasse nas mãos dos apóstolos e discípulos diretos, seria uma seita de fanáticos e irridentistas como muitas outras que havia na época (e que só acabaram com a destruição do segundo Templo de Salomão, na década de 70 da era corrente).

Mas é necessário entender que o passo fundamental para o “Ocidente ter-se baseado no cristianismo” não teve relação alguma com os méritos intrínsecos, intelectuais ou morais, do cristianismo, mas vincula-se a algo que deve ser chamado mais propriamente de golpe político dado pelos imperadores romanos – em particular, Constantino e Teodósio, que respectivamente descriminalizou a antiga religião de escravos e que a tornou a religião oficial do Império[4]. Assim, foi graças à estrutura política de Roma – em outras palavras, porque se aproveitou do Estado – que o cristianismo pôde realmente se difundir, não apenas na Europa, no final da Antigüidade e no início da Idade Média, mas pelo mundo inteiro, já na Idade Moderna, com as grandes navegações.

Isso está bem longe de ser tudo. O “Ocidente” são as populações européias e suas ramificações, especialmente nas Américas e na Oceania. Além disso, e especialmente, o Ocidente é a cultura ocidental. Não apenas o catolicismo desde o seu início foi fortemente marcado por elementos gregos e politeístas[5] – na verdade, todos os doutores da patrística eram profundos conhecedores da filosofia grega e incorporaram ou adaptaram o pensamento grego para a religião cristã –, como, após o surgimento do Islamismo e da tomada da Península Ibérica, a difusão do pensamento árabe permitiu que vários antigos pensadores gregos fossem recuperados. Esses pensadores recuperados tinham sido perdidos devido a vários motivos: guerras, invasões bárbaras, declínio político; mas um forte elemento para essa perda foi o desprezo cristão pelos seus pais espirituais.

Os árabes, assim, permitiram a reintrodução no Ocidente dos gregos, especialmente de Aristóteles: como o racionalismo aristotélico é muito mais poderoso que a fé cristã, a igreja viu-se obrigada a lidar com isso, assumindo essa responsabilidade Tomás de Aquino.

Indo mais adiante, importa lembrar com muita clareza que o Ocidente não se constituiu e não se constitui somente na Idade Média: na verdade, foi a partir do término dela, com os movimentos que conduziram à Idade Moderna que se iniciou o que se chama atualmente de “Ocidente”. Pois bem: os movimentos intelectuais e morais que se desenvolveram e desenvolvem-se desde essa época são, cada vez mais, realizados fora e contra a igreja, ou melhor, fora e contra a religião. Basta pensar-se na ciência; nas artes; no Estado; na consolidação das liberdades civis: todos esses movimentos são feitos a despeito da igreja e a despeito da religião, quando não contra uma e outra.

O bispo Flach, portanto, está totalmente incorreto ao afirmar que o Ocidente tem uma “origem” cristã. A sua observação “histórica” na verdade ignora e distorce a história; a única história que lhe interessa é da sua própria igreja – e, bem vistas as coisas, para ele a sua igreja consiste no início e no fim de toda a história humana[6].

Mas, mesmo que o sr. Flach estivesse correto em termos históricos, ainda assim seu raciocínio seria errado, ou melhor, falacioso. Ele argumenta que, por supostamente o Ocidente ter uma origem cristã, ele deveria permanecer sendo cristão. Isso equivale a dizer que devemos sempre, por puro hábito, por puro tradicionalismo – por pura fé – manter hábitos que tivemos muito tempo atrás, mesmo que esses hábitos não se mantenham mais ou não se justifiquem mais. Esse tradicionalismo é o mesmo que justificaria, por exemplo, a permanência da escravidão: afinal de contas, de 1530 a 1888, o Brasil foi construído em cima do trabalho servil (justificado, aliás, pela igreja). Ou que não devemos usar automóveis (ou bicicletas) porque durante milhares de anos os seres humanos andaram a pé, de carroça ou a cavalo. Em outras palavras, é o apego mais completamente irracional ao passado – apenas porque é “passado” e “tradicional”.

§ 3º – Obrigatoriedade de professar o catolicismo em uma universidade católica

As universidades católicas são instituições particulares de ensino e, nesse sentido, são livres para professar as doutrinas que quiserem. Embora a igreja católica não respeite a laicidade do Estado, certamente se beneficia dos dispositivos legais que lhe concedem essa liberdade – e, na verdade, faz questão de tais dispositivos (embora procure cercear essas liberdades para os demais – no que é imitada por inúmeras outras igrejas).

Nesse sentido, a recente afirmação de Luiz Gonzaga Bergonzini, bispo emérito de Guarulhos e sacerdote arquiconservador – segundo a qual quem não concorda com os valores professados pela igreja católica não deve reclamar deles no interior de uma universidade católica – faz todo o sentido (PROFESSOR DA PUC DEVE RESPEITAR, 2012). Da mesma forma, é difícil sustentar a contra-argumentação da presidente da Associação de Professores da PUC-SP, Maria B. Costa Abramides, segundo a qual é possível expor opiniões contrárias à igreja católica na PUC-SP porque essa universidade deveria ser laica (PROFESSOR DA PUC-SP DEVE SEGUIR, 2012) – por definição, a PUC não é e não precisa ser laica.

Dito isso, convém refletirmos com um pouco mais de cuidado sobre esse pequeno debate, pois ele apresenta elementos mais profundos e mais problemáticos que a mera afirmação do caráter confessional da PUC: ele diz respeito, por um lado, à história do Brasil e ao projeto de poder que explicitamente a igreja católica busca implementar desde 1916 e, por outro lado, à chamada “concepção de universidade”, que se refere, por sua vez, aos conceitos de ciência e de religião (ou melhor, de teologia).

Iniciemos pela história das PUCs. Essas universidades, a começar pela do Rio de Janeiro, foram fundadas no Brasil a partir da década de 1940 com o objetivo explícito de formarem quadros técnicos, mas acima de tudo culturais e políticos, para que a igreja católica mantivesse o controle do Estado, especialmente a partir da posse do capital simbólico obtido com o diploma universitário. Nesse sentido, importava muito menos o seu aspecto científico, isto é, de preocupação com a pesquisa científica que o seu aspecto doutrinário, ou melhor, proselitista. Essa forma de pensar, própria do projeto da neocristandade proposta por Sebastião Leme e levado a cabo exemplarmente pelos leigos Jackson Figueiredo e Alceu Amoroso Lima, constituiu-se em um padrão, verificado em todo o país[7].

Dessa forma, as PUCs sem dúvida eram em sua origem “católicas” e “pontifícias”, mas a palavra “universidade” é mais problemática de aceitar, haja vista sua preocupação precípua com a propaganda e o proselitismo – elementos claramente presentes até hoje, embora bastante minorados.

Por outro lado, cumpre notar que o que são, hoje, as universidades. Afirma-se correntemente que são instituições baseadas no ensino, na pesquisa e na extensão, ou seja, na transmissão do conhecimento técnico, científico e cultural; na produção e no avanço de novos conhecimentos; na aplicação mais imediata desses conhecimentos junto à sociedade. Um centro de divulgação e doutrinação pode, perfeitamente, realizar as atividades de ensino e de extensão: já a pesquisa requer um pouco mais. Ou melhor: um centro de divulgação pode ensinar e fazer extensão, mas somente em princípio.

O que ocorre é que a “pesquisa” refere-se à pesquisa científica. A ciência atua com base na formulação de hipóteses, na verificação, na correção, na contestação e na crítica públicas; ela é relativa, ao passo que a teologia é absoluta, ou seja, indiscutível, impassível de crítica. Os pós-modernos e muitos dos sociólogos da ciência podem contra-argumentar e negar essas definições, afirmando que a ciência é um conhecimento como “outro qualquer”, mas o fato é que, por um lado, esses mesmos pós-modernos e sociólogos da ciência desejam (ou pretendem) fazer “ciência”; por outro lado, eles beneficiam-se enormemente dos frutos da ciência e não das “outras” formas de conhecimento. Os frutos da ciência não são apenas tecnológicos (como o computador em que escrevo este texto, ou a internet em que o texto aparece ); são também frutos intelectuais – a concepção de que a realidade é submetida a leis naturais e que, mesmo que entidades sobrenaturais existam, os seres humanos vivem e agem sem a menor necessidade delas – e também frutos políticos: foi a ciência, com seu mecanismo de crítica política e dúvida sistemática, que permitiu o pluralismo político e as liberdades de que gozamos atualmente[8].

O resultado é, embora a PUC-SP e todas as demais PUCs e universidades (e faculdades) católicas (e confessionais) do Brasil, embora possam ter sido criadas com o fito prioritário de fazerem proselitismo e de afirmarem política e culturalmente a hegemonia do catolicismo no país, são instituições que devem ensinar com base nos parâmetros da ciência[9]. E são precisamente esses parâmetros que se opõem aos valores básicos de suas instituições.

Pode-se pensar que esses conflitos entre a fé proselitista e a ciência baseada na crítica pública e sistemática surgem com maior freqüência nos cursos das Ciências Humanas; talvez seja assim, de fato. Mas nas Ciências Naturais isso não é menos verdade. Os conflitos ocorrem tanto no ensino quanto na pesquisa: o que fazer caso um biólogo ou um médico ou um veterinário queira investigar as células-tronco embrionárias em uma PUC? Será ele proibido, devido aos valores morais da igreja? Ou em um curso de Geologia ou de Física: segundo alguns teólogos, a Terra (bem como o Universo) não teria muito mais que seis mil anos, o que é evidentemente errado para qualquer pesquisador que já tenha estudado as formações geológicas do planeta ou as radiações cosmológicas de fundo. E quando for para ministrar a famosa disciplina de “Método Científico”? Uma das afirmações fundamentais nessa disciplina é constatar, ou lembrar, que a ciência é aberta e que por isso avança, ao passo que a religião é fechada e que se baseia em última análise na pura crença (por mais irracional e absurda que seja).

E quando os estudantes das PUCs tiverem que fazer extensão universitária, como será? Os estudantes dos cursos da área de Saúde que tiverem que tratar das doenças sexualmente transmissíveis, como deverão conversar? Deverão dizer que sexo é pecado e que não se deve usar, nunca, preservativos? Que o homossexualismo é pecado e manifestação do diabo? Que um alcoólatra não é uma pessoa frágil, fragilizada e dependente psicoquímica mas, na verdade, é um ser possuído pelo demônio?

Em suma, o problema a respeito da crítica do arquiconservador Luiz Gonzaga Bergonzini à liberdade de pensamento na PUC-SP não é que deve haver “liberdade de pensamento” ou “laicidade” na PUC: o problema é que a religião e a igreja católica, bem como as teologias de modo geral, são contrárias à liberdade de pensamento e à laicidade. O problema, então, é que a idéia de uma “universidade católica” é um oximoro, ou seja, uma profunda contradição em termos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEGA, M. T. S. 2006. Gênese das Ciências Sociais no Paraná. In: OLIVEIRA, M. (org.). As Ciências Sociais no Paraná. Curitiba: Protexto.

DELLA CAVA, R. 1975. Igreja e Estado no Brasil no Brasil do século XX: sete monografias recentes sobre o catolicismo brasileiro, 1916-1964. Novos Estudos, São Paulo, n. , p. 5-52. Disponível em: http://www.cebrap.org.br/v2/files/upload/biblioteca_virtual/igreja_e_estado_no_brasil.pdf. Acesso em: 8.abr.2012.

LACERDA, G. B. 2007. Comemoração de Trajano. Disponível em: http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com.br/2007/01/comemorao-de-trajano.html. Acesso em: 8.abr.2012.

SCAMPINI, J. 1978. A liberdade religiosa nas constituições brasileiras. Petrópolis: Vozes.

Outras fontes

CNBB afirma que escolas não podem impor o pai-nosso aos alunos. 2012. 4.abr. Disponível em: http://www.paulopes.com.br/2012/04/cnbb-afirma-que-escolas-nao-podem-impor.html. Acesso em: 8.abr.2012.

Jesus é uma aglutinação de mitos que simboliza Deus e Satanás. 2011. 28.maio. Disponível em: http://www.paulopes.com.br/2011/05/jesus-e-uma-aglutinacao-de-mitos-que.html. Acesso em: 8.abr.2012.

Professor da PUC deve respeitar doutrinas da Igreja, afirma bispo. 2012. O Estado de S. Paulo, 13.mar. Disponível em: http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=81530. Acesso em: 8.abr.2012.

Professor da PUC-SP deve seguir dogmas da Igreja, defende bispo. 2012. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/507429-professordapucdeveseguirdogmasdaigrejadefendebispo. Acesso em: 8.abr.2012.

Reação de aluno ateu a bullying acaba com pai-nosso na escola. 2012. 3.abr. Disponível em: http://www.paulopes.com.br/2012/04/reacao-de-aluno-ateu-bullying-acaba-com.html. Acesso em: 8.abr.2012.

Tirar crucifixo dos tribunais é ato ‘de quem não é do bem’, diz bispo. 2012. 4.abr. Disponível em: http://www.paulopes.com.br/2012/04/tirar-crucifixo-dos-tribunais-e-ato-de.html. Acesso em: 8.abr.2012.


[1] Convém notar que esse livro é um tratado de Direito Canônico, favorável à igreja católica; assim, ele adota uma postura de defesa da igreja e de seus interesses.

[2] Esse preconceito que atribui a quem defende a laicidade a falta caráter ou de moralidade foi feita como justificativa para a manutenção de crucifixos em espaços públicos brasileiros, ou seja, para o desrespeito à laicidade do Estado. Curiosamente, o sr. Flach esquece-se de que a laicidade também é um fruto e um elemento fundante do Ocidente.

[3] Ainda assim, pelo menos desde o século I antes da era corrente os políticos romanos já iam à Grécia para educarem-se: um claro exemplo disso é o de Cícero, que estudou filosofia em Atenas.

[4] Convém lembrar que as crenças dos cristãos – centrados no desprezo à vida e à realidade presente – eram vistas com horror e desprezo pelos romanos mais instruídos (cf. LACERDA, 2007). Apenas devido ao avanço do misticismo oriental na elite e do crescente peso político do cristianismo na base demográfica do Império – não por acaso, na fase de decadência do Império – que Teodósio e Constantino agiram como agiram.

[5] Há outros elementos do cristianismo que derivaram do politeísmo. Um exemplo simples: o natal é comemorado em 25 de dezembro devido à comemoração politeísta do solstício de inverno, em particular da festa da Saturnália. Uma exposição rápida da idéia de Cristo – e, daí, do cristianismo – como amálgama dos politeísmos anteriores pode ser vista em Jesus é uma aglutinação de mitos (2011).

[6] Não é isso, afinal de contas, que afirma a Bíblia (bem como a Torá e o Alcorão)?

[7] No caso do Paraná, por exemplo, a preocupação com o proselitismo era tão evidente que o curso de Ciências Sociais, fundado em 1938 na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Paraná por irmãos maristas, teve até 1950, ano da federalização, apenas cerca de 20 alunos e três ou quatro professores permanentes (sendo que tais professores, evidentemente, foram selecionados não por suas competências técnico-científicas, mas por seus comprometimentos com o projeto político católico). Após a incorporação da Faculdade à Universidade do Paraná e subseqüente federalização, com a perda do monopólio – e do controle – sobre o currículo, os leigos católicos criaram na PUC-PR um outro curso de Ciências Sociais (cf. BEGA, 2006).

[8] Como argumentava Augusto Comte, não é por acaso que filosofias absolutas tendem a ligar-se a regimes políticos autoritários.

[9] Essa afirmação não é válida somente em termos sociológicos gerais, ou seja, tais instituições não devem ensinar com base na ciência apenas porque a ciência é a forma de conhecimento socialmente mais difundida atualmente: há também fortíssimos constrangimentos jurídicos que as obrigam a isso – em particular, a fiscalização do Ministério da Educação e das agências de fomento à pesquisa.